por J.C. Ruzza
Em tempos de tanta pressa, informações fragmentadas que nos chegam via celulares e outras telas são absorvidas superficialmente para podermos, logo em seguida, partirmos para a próxima, e outra e outra.
Leituras que exigem um pouco mais de fôlego são adiadas para nossas desejadas férias ou até mesmo para quando chegar uma suposta aposentadoria. Assim, nossa estante vai se enchendo de livros nunca lidos, alguns sequer retirados de seus invólucros de plástico transparente.
Um acaso me faz lembrar de um livrinho pequeno. Tenho até dificuldades em localizá-lo espremido entre tantos outros com sua surrada lombada negra, que mal chega a meio centímetro, mas que guarda exemplos de sabedoria para uma vida toda.
“A arte cavalheiresca do arqueiro zen”, Eugen Herrigel, Editora Pensamento
Minha edição é antiga, de 1995. Fico sabendo de uma outra mais recente com prefácio escrito pela Monja Cohen, o que faz meu interesse se renovar ainda mais. Em sua capa desgastada mostra-se, além do título, a imagem que pode sugerir um arco sendo tensionado prestes a disparar uma flecha.
Ao chegar próximo de seus 40 anos, o professor e filósofo alemão Eugen Herrigel, desde sempre atraído pelo modo de pensamento que poderíamos chamar de Oriental, inicia um período de seis anos lecionando na universidade de Tohoku/Japão, para onde se mudou com sua companheira. Neste período também inicia atividade do tiro com arco, tal como esta é praticada pelos mestres Zen Budistas.
A leitura vai nos mostrando o choque entre um modo de pensamento prático (voltado exclusivamente a resultados, à produção de fins e, normalmente, fins que tenham alguma utilidade material) e um outro modo e prática onde o caminho é o “objetivo” (o trilhar, em si, e a transformação interna gerada pelo ato são os alvos). A rigor, práticas que alguns considerariam “inúteis” se pensarem em termos do primeiro modo.
Mas qual objetivo?
Na introdução, D.T. Suzuki, grande referência quando se fala de zen budismo, nos informa:
O que nos surpreende na arte do tiro com arco e na de outras artes que se cultivam no Japão… é que não tem como objetivo nem resultados práticos, nem o aprimoramento do prazer estético, mas exercitar a consciência (…) A meta do arqueiro não é apensas atingir o alvo; a espada não é empunhada para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, é harmonizar o consciente com o insconsciente.
Ou, dito de outro modo, transcender os limites do que conhecemos como Ego e, ao mesmo tempo “sem jamais sair da nossa vida cotidiana” com todas suas necessidades práticas, nos colocar num fluxo diferente do banal.
Se, ainda assim, insistirmos em atribuir a isso algum objetivo, poderíamos dizer: nos esvaziarmos de nós mesmos e, ao menos temporariamente, de nossas mentes barulhentas e ansiosas por terminar, dar fechamento a todas as coisas.
A cerimônia do chá, a arte da caligrafia, o Ikebana… diversos exemplos nos chegam e de tempos em tempos viram moda. Participamos, admiramos, mas é sempre grande a dificuldade de penetrar num conhecimento tão distinto do qual estamos acostumados a ser expostos cotidianamente.
Um paradigma diferente
Nesta sua pequena mas profunda história, o autor narra seu mergulho em um mundo caracterizado por paradigmas muitas vezes opostos ao que utilizamos, sem perceber, em nossas vidas.
“Este é seu maior erro: o senhor se esforça, daí, só pensa nisso” repreende seu mestre no sentido de inverter o que lhe parece óbvio. “Não respirar, mas ser respirado!”. Sim, difícil. Deixar-se abandonar ao ponto em que uma flecha, presa a um arco tenso, dispare-se por si só?
De fato, não estamos muito acostumados a este tipo de entrega. Em primeiro lugar, pelo excesso de coisas e pensamentos que abarrotam nossas vidas. Até nossos momentos de lazer ou descanso são, muitas vezes, preenchidos por uma agenda que precisa ser cumprida e reproduz a lógica de produção de nosso sistema.
Ademais, internalizamos tão profundamente esta lógica de produtividade e busca por fins que acreditamos que pensar em dez outras coisas, enquanto mal nos dedicamos ao que fazemos no presente é sinal de eficiência.
Não conseguimos fechar a porta dos sentidos através de uma simples reclusão e de uma disposição a, de certo modo, ceder sem resistência a algo. Para conseguirmos instintivamente esta atitude (paradoxalmente, não-ativa), o autor crê que o espírito precisa de um apoio íntimo que é o ato de respirar…
Quanto mais intensa a concentração na respiração, mais rapidamente desaparecem os estímulos interiores, pois eles se confundem com vagos murmúrios a que prestamos cada vez menos atenção, até que deixem de nos perturbar… ( pag. 46)
Sinto informar: uma leitura que exige atenção e até um pouco de esforço em tempos de posts imediatos, notícias fragmentadas e um tsunami de informações no qual estamos mergulhados e que, nitidamente, já ultrapassaram nossas capacidades cognitivas de absorção e processamento.
Até por isso a capa de minha edição se encontra tão gasta. Venho frequentando este livrinho há muitos anos. A cada volta algo novo é compreendido e me surpreendo mais e mais com a sabedoria contida ali. Mas afirmo: vale o esforço (ou seria a entrega?).
J.C. Ruzza é artista multimídia, Bacharel em Filosofia, Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e gosta mais de perguntas do que de respostas.