Um dos resultados subjetivos da criação e posterior popularização do que chamamos de Internet é uma espécie de “encolhimento do mundo”. Me refiro ao acesso, via imagens, de locais dos quais muitas vezes sequer ouvimos falar. De modo que, ao menos no modo virtual da realidade, o mundo já não parece um lugar tão imenso e desconhecido.
Praticamente todo o Globo já se encontra mapeado, registrado e divulgado, bastando para isso digitarmos o nome de uma localização existente e lá estarão imagens, e demais informações sobre um lugar qualquer, remoto ou não, onde alguém um dia pisou.
É possível também, graças a esta ferramenta (Internet) obtermos detalhes e informações que viabilizem e facilitem nosso deslocamento, evitando diversos problemas que haviam anteriormente. Praticamente tudo referente a isto, atualmente, pode ser realizado online.
Por outro lado, também é algo comum associarmos o uso das ferramentas digitais a uma onda atual de sedentarismo, principalmente relacionada aos mais jovens. Em alguns casos, o corpo e o deslocamento do mesmo, dando lugar a este deslocamento do mundo ao nosso redor, tudo na ponta dos dedos.
Nômades ou sedentários? São historicamente apontados como definidores do modo humano de ocupar o mundo. Viajantes, seguidores de fluxos tendo o deslocamento como característica da vida ou criadores de enraizamentos e fundamentos fixos que perdurem num local com o passar do tempo.
Pois Michel Onfray, filósofo francês, cujo próprio pensamento se caracteriza por um certo desenraizamento (autor dos diversos volumes da Contra-História da Filosofia, pela Editora WMF), deixa claro sua predileção neste elogio à arte de se deslocar propositadamente: as pouco mais de 100 páginas da Teoria da viagem: poética da geografia, lançado aqui no Brasil pela LP&M editores.
“Os primeiros amam a estrada, longa e interminável, sinuosa e ziguezagueante; os segundos se comprazem com a toca, sombria e profunda, úmida e misteriosa. Esses dois princípios existem menos em estado puro, à maneira de arquétipos, do que como componentes indiscerníveis na particularidade de cada indivíduo”
Nascido em Argentan em 1959, Onfray, doutor em Ciências Políticas e Jurídicas, lecionou filosofia por mais de duas décadas antes de se desencantar com as limitações impostas ao pensamento pelo ensino padrão e acabar por fundar a Universidade Popular de Caen, marcada por métodos nada ortodoxos.
Teoria da viagem consiste de ensaios marcados pelo e sobre o nomadismo, buscando o estado primordial do viajante e retratando poeticamente um verdadeiro inventário de reflexões andarilhas sobre a antiga arte do deslocamento.
Divido em capítulos que remetem a possíveis e diversas fases de uma viagem (querer viajar, escolher um destino, iniciar o deslocamento, o deslocamento em si, reencontros…), seu livro parece querer reencontrar um certo espírito, senão perdido, cada vez mais raro de se verificar naqueles que se deslocam geograficamente. Não à toa, faz questão de enfatizar algumas diferenças entre o “turista” e o “viajante”.
O segundo, caracterizado não só por um certo afastamento de suas chamadas “zonas de conforto”, mas também por uma busca de si mesmo, auxiliada pela mudança de eixo causada pelos descentramentos que fogem de uma programação mais rígida. Ao contrário do turista, com seus programas, horários, locais imperdíveis e inevitáveis, etc.
Sendo assim, temos, quando no modo “viajante”, um deslocamento externo retroalimentando um deslocamento interno (pensamento nômade), movimento possível apenas em situações onde uma porta mínima para o acaso se mantenha aberta.
“A viagem, de fato, é uma ocasião para ampliar os cinco sentidos: sentir e ouvir mais vivamente, olhar e ver com mais intensidade, degustar ou tocar com mais atenção – o corpo abalado, tenso e disposto a novas experiências, registra mais dados que de costume. O viajante percebe-se menos preso às rotinas do cotidiano…”
Um verdadeiro convite ao descondicionamento dos hábitos automatizados, gerados em nós quando vivemos no modo “estático”, para poder viabilizar nossas necessidades modernas. Leitura mais que recomendada a quem aprecia certa vertigem gerada pelo alteração de nossas certezas e geografias internas.
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