Alguns livros entram em nossas rotas de modo bastante peculiar. Todos aqueles que são amigos destes seres de papel (ou bits) sabem do que falo. Neste caso, movido por um mergulho feito há décadas, em busca de compreensão sobre a arte do Zen, acabei levando pra casa o que acreditava ser um manual bastante específico sobre como fazer reparos em motos antigas sem ficar nervoso.
Um parêntesis: é muito comum a crítica à tradução de títulos, principalmente de filmes e livros, que muitas vezes se distanciam (quando não se desviam totalmente) das intenções originais dos autores. Na maioria dos casos, tal prática responde a exigências mercadológicas, devido a diferenças culturais que precisam ser aplainadas. É o caso, por exemplo, do clássico de 1958, Vertigo (ou Vertigem pra nós), do mestre Hitchcock, que por aqui foi rebatizado com o título-spoiler de Um Corpo que Cai. Parece que em Portugal ficou: A Mulher que Viveu Duas Vezes !
Voltando: Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas – Uma investigação sobre valores (ou simplesmente “Z.A.M.M.”, como ficou conhecido em alguns meios alternativos), de 1974, é um exemplo contrário. O título (convenhamos, no mínimo curioso) de nossa versão é, praticamente, a transcrição literal do titulo dado a versão original, escrito por Robert M. Pirsig (1928-2017), cuja biografia já daria um grande livro.
Não é exatamente um livro sobre o que costumamos relacionar ao “Zen”, mas, afinal, o que é sabemos ou podemos dizer sobre este termo?
Outra coisa que parece comum entre alguns livros e filmes é a dificuldade que surge ao tentar respondermos à pergunta-sinopse: “– Mas é sobre o quê?”. Muitas vezes, esta dificuldade se encontra na mesma proporção da qualidade da obra. Obras complexas são difíceis de sintetizar.
Relato de viagem? Ficção autobiográfica? Romance filosófico?
Recusado por mais de 100 editoras antes de ser lançado, vender mais de 1 milhão de cópias apenas no primeiro ano e virar um grande best seller (embora quase desconhecido por aqui, é considerado por alguns críticos como o livro de filosofia mais vendido da história), é um livro difícil de enquadrar.
Sem dúvida, porque o próprio autor, que lecionou filosofia até o fim da vida, também faz parte do grupo de pensadores inquietos que percebem o quanto o pensamento, quando institucionalizado, pode ganhar em clareza na mesma medida que perde em sua capacidade criativa.
Quer dizer, o modo como o pensamento se cristaliza para se enquadrar nos modelos de racionalidade vigentes nas instituições de ensino e nos ditames, muitas vezes apenas burocráticos, do mundo acadêmico, pode fazer com que perca muito de seu vigor.
Não se trata, para o autor, de questionar a validade do pensamento científico ou racional, mas antes, questionar o modelo de racionalidade que adotamos.
A forma que Pirsig escolheu para tratar de questões como filosofia, relacionamento pai e filho, racionalidade (e loucura também, já que o autor passou por tratamentos mentais nada sutis), método científico, viagens, e sim, claro, manutenção de motocicletas (no fundo um subterfúgio para tratar da “suposta” antagonia: natureza X tecnologia), ou seja, todo um universo de questões pessoais e universais, também chama à atenção.
Pai levando o filho para uma viagem na garupa de sua moto pela Costa Oeste dos Estados Unidos, parando eventualmente quando necessário para uma série de palestras de estilo socrático (chamadas de Chautauquas, palavra de origem Indígena que nomeava um lago em Nova York, onde se iniciou um movimento caracterizado pela organização de acampamentos educacionais) onde expõe ao filho suas teorias sobre todo o pacote de assuntos acima citados, e claro, um pouco sobre a mecânica destas máquinas de deslocamento sobre duas rodas.
Enquanto as paisagens formadas por vales infinitos e enormes cadeias de montanhas, árvores, rios, pássaros, cidades minúsculas e fazendas vão sendo atravessadas ao som do motor rangendo, o autor reflete:
“…percebemos estas coisas, mas não tomamos realmente consciência delas, a menos que algo nos chame a atenção ou que elas nos revelem algo que estamos predispostos a ver. Não nos seria possível tomar consciência dessas coisas e lembrar de todas elas…”
Isto porque nossas mentes ficariam tão abarrotadas, sobrecarregadas de informações e detalhes, muitas vezes sem utilidade aparente, que simplesmente não conseguiríamos mais pensar em nada. Dessa aparentemente óbvia percepção, que é de onde partem, quase sempre, as reflexões mais importantes do pensamento humano, do óbvio ou banal, diz Pirsig:
“…precisamos selecionar, e aquilo que selecionamos e denominamos consciência, nunca coincide plenamente com a percepção que tivemos, pois o processo de seleção a transforma. Retiramos um punhado de areia da infindável paisagem da percepção que nos rodeia e achamos que este bocado de areia é o mundo!”
Referências a Platão (Fedro, célebre texto platônico, dá nome ao “personagem” criado pelo próprio personagem principal no texto de Pirsig), pensamento cartesiano, existencialismo, entre outras, não impedem a qualquer leitor de obter proveito e até prazer em sua leitura. Na verdade pode, inclusive, servir como incentivo a um aprofundamento maior no universo filosófico (iniciei meu caminho na Filosofia após a leitura deste livro).
Pirsig nos deixa um relato corajoso e interessante de quem se atreve a deslocar seu pensamento racional até o limite (algumas vezes o ultrapassando). Para além de um simples relato de viagem, trata-se, novamente, de um livro sobre deslocamentos, externos e internos, que nos retirem de nossas zonas de conforto, físicas e mentais e que almejem exatamente este resultado, nos descentrar de nossos eixos, muitos mais do que simplesmente atingir um destino específico.
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