...Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa contra a mola que resiste...*
Esse conjunto de crenças, costumes, comportamentos etc., compartilhados socialmente em grupos maiores ou menores que a gente chama de Cultura, não é um depósito onde estas coisas se acumulam tranquilamente e nem de um dia para o outro.
Trata-se de uma produção constante, simbólica e material, muitas vezes conflituosa e até contraditória.
Primeiro, porque não é algo homogêneo: vários comportamentos “culturais” convivem num mesmo espaço e tempo, nem sempre de modo pacífico, gerando conflitos geracionais, sociais etc. Segundo, porque alguns comportamentos respondem menos a demandas necessárias para o avanço da humanidade e muito mais a interesses relacionados ao lucro necessário a todo um mecanismo: o consumo.
Cultura, então, olhando-se mais detidamente, é um campo de batalhas de convencimento, questionamentos, onde crises se desenvolvem, algumas coisas permanecem o,utras ficam para trás.
Alguns, lutando para conservar hábitos e comportamentos que acreditam ser os melhores para todo um grupo social, esbarram na inexorável transformação a que todas as coisas estão sujeitas. O mundo não pára de se transformar.
Outros, buscando abrir horizontes novos, que na maioria das vezes se chocam com os anteriores, sofrem resistência e precisam de força de convencimento para se impor.
O fato é que precisamos de um solo que tenha um mínimo de firmeza e estabilidade para nos lançarmos em direção ao novo e, ao mesmo tempo, entender que um certo nível de conflito ou debate em torno do que fica ou se vai é natural (até um certo ponto, que se mantenha saudável) em qualquer grupo social.
A compreensão de que algumas tradições sustentam o tecido social, mas, que ao mesmo tempo é preciso saber e estarmos abertos a fazer uma revisão de todo este pacote, sempre que necessário, não se dá a todos com facilidade.
Muitos comportamentos culturais lamentáveis e praticados por grupos bem relevantes já passaram por reavaliações, se transformaram e prosseguem necessitando de mais revisões (o consumo como moeda de status social, segregação racial…).
Um modelo saudável seria onde as mudanças partissem de uma avaliação conjunta (não, necessariamente, unânime) que levasse em consideração o bem-estar comum, mesmo que à custa de certas preferências pessoais, algo bem difícil de se aplicar, a não ser em relação a comunidades muito pequenas ou isoladas.
Um dos problemas para que isto funcione em âmbitos maiores é que nem sempre o bom senso é o parâmetro utilizado nas tomadas de decisões. O que vemos é mais próximo do contrário.
Uma das questões-chave deste espaço é a insistência na necessidade da imediata tomada de consciência em relação aos nossos comportamentos e hábitos de consumo. A ciência de que, ao continuarmos nesse ritmo, nosso planeta não será um lugar muito agradável de se viver para as gerações futuras. A cultura do imediatismo.
Alimentados incessante e incansavelmente, comportamentos destrutivos e egoístas muitas vezes são vendidos como se fossem algo natural e não reflexo de interesses diversos ligados geralmente a obtenção de lucros, independente do meios que usem e o resultado que deixem em sua trilha.
De modo geral, este algo meio indefinido que aqui estamos denominando Cultura tem respondido muito mais a estas demandas acima do que ao bem-estar do todo.
Até porque aqueles que têm conhecimento sobre a subjetividade humana e decidem usá-lo apenas para o bem pessoal e não o coletivo acabam se transformando em vetores, verdadeiros centros gravitacionais que modulam e direcionam o comportamento geral de acordo com este tipo de interesse.
É o caso, por exemplo, das redes sociais: se postar uma foto do prato com a comida que estou prestes a engolir, interrompendo muitas vezes um momento que deveria estar sendo exclusivamente compartilhado com quem, à nossa frente, divide isto conosco, se “transforma” em um hábito cultural, a prática perde a sua estranheza e muito rapidamente vira quase uma imposição comportamental. Com o risco, inclusive, de gerar patologias (de novo, a F.O.M.O.) caso se tente seguir por um caminho comportamental distinto.
O bom pensamento (aquele que sabe se manter vivo e crítico e, ao mesmo tempo, entender que participamos de um todo bem maior do que nossas demandas e desejos pessoais) diria que devemos nos atentar mais para quais comportamentos são gerados por necessidades reais ou por estas, artificiais, criadas para nos convencer a expor momentos como o acima, onde o que deveria prevalecer é a presença e não a projeção.
Certos comportamentos massificados são apenas respostas geradas por necessidades que nada dizem de importante sobre nós ou mesmo são, de algum modo, construtivas. Mas, são tão bem “vendidas” que acabam por fazer parte do que acabamos por chamar de normal (aquilo que é culturalmente aceito assim).
No fundo, são necessidades criadas em nós para que participemos da manutenção de algo bem maior e mais impessoal do que nossas necessidades básicas. As fotos de momentos prosaicos ou pessoais que fazem a máquina bilionária (redes sociais) de uma meia dúzia de seres humano girar, a todo vapor, por exemplo.
O fato é que, quando ultrapassamos uma massa crítica em relação a um comportamento, este passa a categoria de “normalidade”, sendo assim absorvido na base comum e replicado, formando o que poderíamos chamar de hábitos culturais. O que não quer dizer que passem a fazer parte do bom senso comum e que não devam ser constantemente reavaliados.
A pressão pela aceitação do que a maioria passa a avaliar (de modo muitas vezes inconsciente) como normal é grande, tornando no geral mais fácil e menos trabalhoso apenas participar, seguir a corrente. Mas, em nome de um mínimo de autonomia, é um trabalho que deve ser feito sempre que possível.
* O texto no início é parte de um poema do português João Apolinário Teixeira, que lutou contra imposições autoritárias em seu país de origem. O poema foi musicado por seu filho João Ricardo, integrante do grupo Secos & Molhados, no início dos anos 1970.
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