Tendo a pensar que tudo aquilo que acaba por circular com certa frequência e intensidade no meio ao qual nos referimos como “sociocultural”, quer dizer, aquilo que de certo modo “entra na moda”, (nas conversas, nos programas diários de TV, etc.) acaba por representar anseios profundos em relação ao momento em que vivemos.
Quero dizer: as questões que povoam esta superfície que chamamos de cotidiano refletem, no fundo, necessidades subjacentes e demandas importantes muitas vezes não atendidas.
É o caso, por exemplo (e mesmo antes do advento da pandemia global), de conceitos, práticas e produtos ligados à questão qualidade de vida/espiritualidade. Pra ficar em alguns exemplos: Yoga, mindfulness, sementes importadas milagrosas e um, com o qual tomei contato mais recentemente: hygge.
Até mesmo o Minimalismo, tema que norteia este Blog, me parece cada vez mais comum escutar sua menção em alguma conversa alheia o que, vale dizer, não é de modo algum algo necessariamente ruim, muito ao contrário. Desde que sejam menções corretas e devidamente acompanhada de práticas.
Importante dizer: na maioria dos casos, são termos normalmente repercutidos em meios frequentados por pessoas que saíram (ou mesmo nunca estiveram) da faixa socioeconômica da luta pela sobrevivência, já que são práticas que quase sempre demandam um certo tempo e recursos livres.
É correto também notar que, embora estes termos surjam de tempos em tempos e tão rapidamente como surgiram e entraram em voga, são rapidamente substituídos por outros, muitas pessoas têm suas vidas positivamente modificadas pelo que, a princípio, se tratava apenas de uma “moda”.
Hygge?
Pronuncia-se “rîgue”, ou “hu-ga” e, como tantos outros, este termo não tem uma tradução direta equivalente em nosso idioma. Aconchego, cordialidade, sensação de conforto, de bem-estar, tranquilidade, ficar “de-boa” (minha tradução pessoal) são, normalmente, ideias associadas ao conceito.
Segundo consta, surge em países escandinavos (Noruega, Dinamarca, Islândia…), provavelmente se relaciona com o clima (invernos longos e gelados) e às condições econômicas (países, em geral, onde as condições de bem-estar social mínimas são um fato) e também ao tempo dedicado ao “ficar em casa” devido justamente a estes dois fatores anteriores e à introspecção favorecida por ambos.
Em entrevista à BBC, Helen Russell, autora do livro The Year of Living Danishly: Uncovering the Secrets of the World’s Happiest Country (O segredo da Dinamarca), afirma:
“O adjetivo de hygge é “hyggeligt”, é uma palavra que costuma ser usada como elogio a anfitriões depois de uma noite agradável em suas casas.. mas…Hygge não é só um conceito da classe média. Todos, do gari ao prefeito, estão incluídos”.
Já, Kayleigh Tanner, autora do blog Hello Hygge (em inglês), afirma que o hygge é difícil de descrever por ser tão abstrato, mas que, de um modo ou outro, começa a ressoar entre muita gente.
Contudo, aponta que alguns dinamarqueses de gerações mais velhas, sentem que o hygge já não é mais o que era, que a ênfase na socialização se reduziu porque agora se considera que assistir TV ou um DVD sozinho é “hyggeligt”.
A motivação correta
Voltando ao início, parece ser característico o aparecimento e utilização constante de termos que remetam a ideias parecidas (qualidade de vida, dedicação extra à saúde e a uma alimentação preventivamente saudável, tempo de lazer e dedicado a atividades físicas, etc.) em grupos que já atingiram um patamar mínimo de bem-estar socioeconômico.
Se, por um lado, a busca por estas práticas reflete carências genuínas, afinal não estamos na Dinamarca e pra se atingir determinadas condições de vida por aqui é necessário termos sacrificado muitas horas de bem-estar, por outro, muitas vezes, estas práticas apenas se somam a quantidade enorme de demandas entulhadas em nosso cotidiano.
Nos inscrevemos em academias ou aulas de Yoga, pra ficar num exemplo, compramos os aparatos que julgamos necessários à prática, fotografamos a primeira aula e (claro) postamos nas redes sociais pra logo em seguida as abandonarmos devido a falta de tempo (ou verba).
Nossas vidas estão cheias até a borda, resultando em problemas de diversos tipos (físicos, mentais, emocionais), mas continuamos tentando encaixar atividades que são apontadas como solução para este excesso.
Quando, em algum momento incomum, conseguimos um espaço vago em nossas mentes ou práticas cotidianas, corremos a preenchê-lo com outras atividades ou preocupações.
A “moda” relacionada às práticas acima apontadas pode distorcer suas intencionalidades características as desviando de seus propósitos originais: mindfulness em empresas visando o aumento da produtividade, Yoga acelerado e turbinado para quem não tem paciência e quer um corpo definido e assim por diante.
Ainda assim, muitas vezes a procura por algo surgida de uma motivação não necessariamente correta, pode sim nos remeter a um questionamento positivo. Quer dizer, não são poucos os que aderem a estas práticas para não se sentirem “por fora” e acabam por as incorporarem de modo transformador em suas vidas.
Em sua essência, estas práticas todas passam pelo questionamento em relação a como estamos utilizando o precioso tempo do qual dispomos em meio a verdadeira corrida que caracteriza em grande parte a vida contemporânea.
Praticamente todos nos remetem à busca pela simplicidade, ao ancoramento no momento presente, a consciência de que “ser” jamais poderá ser algo reduzido à questão do “ter”, em outras palavras, que os vazios existenciais internos nunca serão preenchidos satisfatoriamente pelo acúmulo de objetos ou bens.
Vale portanto, como sempre, a constante reflexão (prática que, por sí só, já demanda tempo) em relação ao que acrescentamos ou mantemos em nossas vidas.
A busca por bem-estar pode, muitas vezes, estar em aproveitar nosso cada vez mais escasso tempo, simplesmente estar presente, “de boa”, no momento. No agora.
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