Ao que tudo indica, a produção de autorretratos virou prática bastante corriqueira e presente em nossas vidas.
Se digo “virou” é porque, apesar de ser uma das primeiras modalidades da fotografia (derivada de prática já presente na Pintura), até há algum tempo não era algo tão onipresente. Quer dizer, o ato de fotografar a si mesmo e, talvez, ainda mais importante, de publicar o resultado é um fenômeno bem contemporâneo e digno de nota.
Pode-se mesmo afirmar que a razão de ser desta prática, que passou a ser denominada selfie, é justamente a sua publicação, alcançar de algum modo outras pessoas. Portanto, uma prática midiática.
A quem gosta de praticar o “bom-pensar”, debruçar-se criticamente sobre qualquer fenômeno de massa no qual se vê incluído é uma prática inevitável. Sendo que “crítica”, aqui, é um termo que deve ser tomado em seu sentido mais rigoroso. Ou seja, não se trata de condenar ou aprovar indiscriminadamente, mas de participar de modo reflexivo.
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Assim como os retratos encomendados aos pintores representavam muito mais do que um simples registro de uma pessoa e mais uma indicação de status social, as selfies também se pretendem portadoras de indicativos muito mais profundos do que um simples registro pessoal.
Interessante notar como a própria prática fotográfica e, por tabela, a maneira como representamos o mundo, para nós mesmos e para os outros se modifica devido a este fenômeno. É o caso, por exemplo, das fotos de monumentos, pontos turísticos e afins.
Se antes, o mais comum era registrarmos o mundo nos colocando de frente para estes “objetos”, hoje na maioria dos casos voltamos as costas a eles, utilizando-os apenas como uma espécie de pano de fundo para a representação de nós mesmos.
É como se não bastasse mais o registro da praia, da torre Eiffel ou algo do gênero, há agora a necessidade imperativa de nos incluirmos ali.
Extrapolando a análise, é como se não bastasse eu ter tido a experiência de maravilhamento diante de um imenso monumento histórico, mas que, se não me incluir nesta representação (a fotografia, no caso), a experiência perderia sua validade. Difícil não implicar uma certa dose de narcisismo na questão.
Para além do fato de termos nos tornado “funcionários” de grandes empresas, produzindo conteúdo sem remuneração e acreditando que estamos utilizando um espaço que é público e gratuito, ocorre muitas vezes de, na verdade, estarmos respondendo mais uma vez a algoritmos e a necessidades subjetivas que mal percebemos.
Já falamos aqui sobre a FOMO, por exemplo, e a angústia gerada pela esperança de cada vez mais likes em nossas imagens que acabam por retroalimentar nossa necessidade de postar algo novamente.
Aqui, ocorre uma inversão importante: se antes registrávamos o que julgávamos importante guardar para a posteridade, agora o importante é criar, a qualquer custo (já são considerados bem relevantes os números de acidentes a até mortes relacionadas), momentos que sejam registráveis e não só: registrar e postar passa a ser o motor da produção.
Uma rápida passada pela timeline da principal rede social na divulgação de imagens mostra claramente que algo pode estar errado.
Assim como o publicitário dificilmente incluirá em seu comercial os pontos negativos dos produtos veiculados por meio de sua propaganda, assim também somos nós a nos projetar nestas redes. O resultado é uma enorme quantidade de imagens representando a estética “comercial de margarina” tão desejada pelos criadores destas redes.
Se no Facebook, o engajamento (moeda que significa a quantidade de tempo em que alguém fica conectado à rede, fornecendo informações comportamentais e sendo exposto a publicidade) se deu muito mais pela via da discórdia, do conflito (afinal, raiva se mostrou mais impregnante do que paz ou concordância, gerando implicações políticas, por exemplo, ainda não totalmente mensuradas), no Instagram, o que parece imperar é a felicidade.
Ou melhor, a produção e postagens de momentos idílicos em situações maravilhosas. Como na referida FOMO, a impressão enganadora de que todos, exceto você, vive um momento equilibrado, sem problemas, centrado o suficiente para expressar apenas imagens brilhantes e legendas motivadoras.
Nada errado com a felicidade, muito ao contrário. Mas ao observarmos os momentos destas produções, o ato em si, verificamos que em muitos casos, são encenações momentâneas criadas pela necessidade de aprovação, para logo em seguida perceber os participantes voltarem à sua vida “real”. Com toda sua gama de complexidade, problemas etc.
De modo que o espaço se torna um palco, no qual precisamos atuar de um certo modo com o risco de não obtermos as palmas que necessitamos para nosso bem-estar.
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Pensar criticamente envolve um mergulho analítico nem sempre agradável. Obviamente não se trata de deixar de fazer aquilo que achamos correto ou que nos faz bem. Mas fazer de modo a que preservemos o máximo possível aquilo que chamamos de liberdade.
Entender quando estamos, de fato, nos expressando, comunicando algo sobre nós e quando estamos apenas respondendo a estratégias e estímulos que exploram nossas mais íntimas necessidades para produzir conteúdo aproveitável por grandes empresas é um exemplo.
Somos seres “gregários”, estar em grupos, ser aceito por outros, sentir-se parte de algo maior é uma necessidade profunda, embora existam os que sigam em outra direção, por motivos diversos.
A questão é mais de “como participar” do que a de “participar ou não” destes fenômenos de massa.
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