A pandemia (Covid-19), acontecimento que surpreendeu a todos e nos forçou à mudança de diversos hábitos, de um momento para outro, também acabou por revelar e exacerbar alguns problemas que muitas vezes passavam despercebidos.
Quer dizer, tornou alguns sintomas patológicos e já existentes – inerentes ao sistema em que vivemos – mais visíveis.
O trabalho remoto, por exemplo, teoricamente deveria nos colocar em situação de maior conforto (muitas vezes até coloca) já que evita deslocamentos no trânsito (quem mora em São Paulo saberá do que estou falando) ou um controle maior sobre nossos horários, etc.
O pensador sul-coreano, Byung-Chul Han, em seu ótimo “Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder” (Editora Ayine) afirma:
“Quem fracassa na sociedade neoliberal do rendimento se acha responsável por isso e se envergonha, em vez de questionar a sociedade ou o sistema. É nisso que consiste a especial inteligência do regime neoliberal. (…) No regime neoliberal da autoexploração, a pessoa direciona a agressão a si mesma”.
Seja um vencedor: “-É uma ordem!”
Ele se refere a um fenômeno, até certo ponto recente e típico de nossas relações de trabalho atuais, a saber: a ideia de que devemos todos ser autoempreendedores, e com o esforço pessoal nenhuma vitória fugiria a nosso alcance. Mas, qual o problema nisso?
Como dito resumidamente acima, obviamente o trabalho remoto tem suas óbvias vantagens. Mas, o que vemos na prática, e na maioria das vezes, não é isso.
O neoliberalismo tem como uma de suas premissas embutidas a ideia de que o esforço individual é tudo o que precisamos para sermos “vencedores”, mas internamente afirma também: nem todos irão “vencer”, quem não vencer foi responsável único por sua derrota, não se esforçou suficientemente, será um perdedor, enfim.
O conceito todo não é novo, mas vem tomando vulto maior já há algum tempo e creio que a pandemia intensificou este processo de cobrança. Sem que muitos percebam, a suposta liberdade de ser dono de si mesmo, de seu caminho, pode nos levar de “senhores” de nossas vidas, rapidamente, à situação de “servos de nós mesmos”.
Ainda segundo o filósofo acima, vivemos com a angústia de achar que nunca fazemos tudo que poderíamos para atingirmos nossa suposta “vitória”. Vitória esta que acaba por nunca chegar, já que, numa sociedade hiperconsumista como a nossa, novas demandas serão sempre apresentadas, o sucesso estará sempre à frente: um carro melhor, uma casa maior…
“Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando; é a lógica traiçoeira do neoliberalismo que culmina na Síndrome de Burnout”.
Autoexploração > autoalienação.
Vivemos uma espécie de alienação de nós mesmos e até nossos momentos de lazer são invadidos, ainda como exemplo, por grandes insights em relação a um novo projeto, ou a solução de um problema relacionado a nosso trabalho.
Dentro do paradigma acima, chamamos isto de eficiência, sentimo-nos orgulhosos, produtivos, que estamos andando diversas “casas” no jogo de tabuleiro da vida.
Quando jogamos bem, independente de estarmos vivendo no modo trabalho, mesmo enquanto desfrutamos de momentos lúdicos em lugares paradisíacos, acreditamos estar cumprindo o dever para conosco mesmos. A compulsão de realização (vencer) passa a ser uma espécie de patrão severo ao qual nos sujeitamos.
O sujeito exacerbadamente realizador acredita ser livre, quando, na verdade, é um escravo explorando-se voluntariamente. Sim, “seja dono de si mesmo”.
Obviamente, nem todos estão fazendo estas escolhas por “si mesmos” (ainda que alienados) e a pandemia colocou muitos neste imbróglio contra sua vontade. Se você é ou tem proximidade com alguém que trabalha como professor, sabe o que isto significa.
Sem contar a mais cruel ainda auto-exploração, supostamente vendida como oportunidade de empreendedorismo, observada na massa de pessoas que não tiveram escolhas diante da crise a não ser se encaminhar para o trabalho informal, sem direitos e com remuneração muitas vezes absurda, diante do lucro real destas empresas.
O resultado: exaustão. Para além da real ameaça a nossas vidas (pandemia), acabamos por nos sentirmos exauridos. Horas e horas diante de uma tela brilhante, desdobrando-nos em diversas responsabilidades.
Talvez, diante da triste e tão forte presença da finitude gerada por um momento como o nosso, devêssemos, quando possível, claro, revermos e reformularmos algumas de nossas crenças e comportamentos. O que, de fato, é importante, essencial? Como estamos vivendo nossas vidas? Onde queremos realmente chegar com tanto esforço e sacrifício?
Não se trata de demonizar qualquer um dos comportamentos e escolhas acima, mas de nos colocarmos a pensar sobre estas.
Leitura recomendada: Além do já citado, indico também, do mesmo autor, A sociedade do cansaço (editora vozes).